EM DEFESA DA ESCOLA LAICA E CIENTÍFICA
No século XVIII, quando os Iluministas levantaram ideias e ações contra a sociedade do Antigo Regime, absolutista, estamental, excludente, dogmático e estruturado em privilégios, apresentaram ao mundo o modelo de escola adequado à sociedade urbana e industrial que viam nascer na Inglaterra. Era necessário formar para o mundo dos negócios e não do ócio, para a intervenção racional na natureza através da inovação técnica e não para a contemplação dos dogmas e mistérios do cristianismo. Educar para as práticas comerciais, nas quais os indivíduos precisam fazer a economia das emoções e dos interesses. Ensinar o uso científico da razão, que fecunda a tecnologia e faz crescer a indústria.
O otimismo dos iluministas no uso pragmático da razão, como princípio universal da nova sociedade liberal, levou-os à defesa da escola para todos, pública, laica e gratuita. Acreditavam que apenas a escola poderia oferecer as condições necessárias para os indivíduos concorrerem por melhores condições de vida e trabalho. Porque o destino das pessoas não era fruto da vontade do Criador, mas do talento individual. Eis o individualismo contemporâneo de raiz iluminista. De fato, o crescimento tecnológico industrial, que exigia serviços de transporte e comunicações e um aparato estatal-burocrático sofisticado, somado ao aumento da organização dos operários em sua luta por melhores condições de vida e trabalho, levou à organização de sistemas públicos de escolarização em massa. Não por acaso, novos processos de industrialização tornaram-se bem-sucedidos na segunda metade do século XIX devido ao investimento do Estado na educação científica. Assim foi na Prússia, que capitaneou a unificação alemã, e no Japão, que expandiu-se sobre regiões do extremo oriente, como a península da Coreia e a China.
Na escola liberal e burguesa do século XIX, aprendiam-se geografia e história para que os empresários soubessem quais povos precisavam subjugar e qual o modo mais lucrativo de exploração; estudava-se ciência da natureza para dominar a mineralogia, as doenças tropicais e os povos colonizados; ensinavam-se artes e linguagens para que os indivíduos trouxessem à superfície da sociedade os valores do mundo industrial, científico, tecnológico, urbano, imperialista. Não podemos ter a ilusão de que a escola pública tenha sido, em algum momento, alheia ao arbitrário cultural da sociedade. O imperialismo das empresas e nações europeias sobre a África, Ásia e Oceania, tanto quanto dos Estados Unidos sobre os territórios a oeste e o Caribe, ou o do Japão na Manchúria, Coreia e China, consolidou um sistema educacional em unidades escolares que cumpriam um currículo comum adequado às necessidades produtivas das sociedades industriais nacionais em expansão. Por outro lado, no cerne dessa civilização industrial também se fortalecia a luta dos trabalhadores, já organizados em sindicatos e partidos políticos, com conquistas consolidadas na Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos. As lideranças obreiras desenvolviam a ambição de serem os agentes educacionais dos filhos da classe operária, enquanto os intelectuais socialistas teorizavam sobre a sociedade de classes e a revolução proletária. Surgiam por toda parte as escolas controladas por sindicatos e movimentos socialistas. Desenvolviam-se nas universidades as ciências sociais.
Estavam ainda do lado de fora da escola, entretanto, os órfãos e os miseráveis das metrópoles europeias, para os quais J. H. Pestalozzi se voltaria por entender e defender a função social da educação. Os pobres poderiam na escola aprender as habilidades necessárias para sobreviverem na sociedade industrial, trabalhar e talvez vencer na vida… Aprimorava-se a antiga caridade cristã em consciência social e habilitação para o mundo do trabalho.
Em sociedades agrárias que ainda carregavam consigo o flagelo moral da escravidão, como o Brasil, a maior parte da população permaneceu sob a cruel chibata do analfabetismo até meados do século XX. Sem ter conseguido romper com a estrutura educacional herdada do período colonial, assim como não foi rompido o sistema de concentração de terras, a exploração do trabalho escravo e a organização oligárquica do Estado, a escolarização dos cidadãos brasileiros acontecia de maneira elitista e tardia apenas nos centros urbanos e sob a hegemonia das escolas cristãs (católicas e protestantes). A maioria dos filhos da elite recebia educação por preceptores, muitas vezes até a fase de preparação para a educação secundária. Em decorrência da ausência de um sistema nacional de educação, até as primeiras décadas do século, as escolas confessionais e as escolas públicas seguiam os padrões curriculares europeus conforme as orientações morais que melhor lhes conviesse. O primeiro movimento organizado em defesa da escola pública e de um sistema nacional laico de educação surgiu na década de 1930, com os Pioneiros da Educação Nova, inspirado no sistema de escolas públicas dos Estados Unidos e nas teorias pedagógicas liberais de J. Dewey. Um programa que foi depois encampado pela ditadura do Estado Novo, e contaminou a educação nacional com a doutrinação fascista do culto ao líder e o patriotismo.
No conjunto das reformas varguistas da educação, devido à necessidade de formar para o mercado, implantaram-se as escolas para a classe trabalhadora, financiadas por associações profissionais sob controle patronal. Iniciou-se na década de 1940 o que hoje é uma marca de nossa educação: o sistema S de educação, cultura e lazer para os trabalhadores e suas famílias - Sesc, Senac e Senai. Nesse mesmo período, organizaram-se as primeiras universidades públicas, como a Nacional do Distrito Federal (Rio) e a do estado de São Paulo (USP), com o objetivo de promover a pesquisa científica em centros de educação superior.
No mundo pós-guerra, revigorou-se a luta social em movimentos estudantis por igualdade racial e sexual, por independências nacionais, por revisão dos valores arcaicos que sobreviveram à vitória aliada. Na África, jovens educados em universidades europeias e estadunidenses saíram em defesa da africanidade, da negritude, das culturas e costumes dos povos colonizados, fazendo disso uma bandeira pela independência das nações africanas. Nos Estados Unidos, jovens negros, muitos com formação universitária, uniram-se na luta contra as leis racistas e segregacionistas que mantinham os descendentes de africanos como cidadãos de segunda classe. Na França, jovens universitários exigiam revisão nas normas da universidade, lutavam por liberdade sexual e de expressão. No Brasil, educadores históricos e jovens universitários mobilizaram-se pela escola pública, gratuita e laica de educação básica, o aumento de vagas nas universidades públicas e gratuitas, e a erradicação do analfabetismo. Embora tenham sido calados por coturnos a cavalo, sócios majoritários do medo vermelho próprio ao contexto da Guerra Fria, deixaram por herança a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a pressão que levou o governo autocrático à reforma universitária da década de 1970.
As últimas décadas do século XX viram a escola ser atacada a bala por extremistas com psicopatias sociais desleixadas ou ignoradas convenientemente pela sociedade industrial high tech. Muitos saíram em defesa da volta da educação doméstica, que, ninguém pode negar, inibe a socialização tão valiosa que só a educação escolar pode e deve oferecer. Outros, amedrontados pelas luzes da liberdade de expressão dos desejos, passaram a pregar uma escola cristã ortodoxa alienada e alienante do mundo contemporâneo, industrial, digital, global... Outros, ainda, passaram a apedrejar a escola pública como centros de doutrinação em um delírio ideológico que remontava ao macarthismo.
Não ousemos negar, vivemos todos no que muitos já chamam de 4ª fase da revolução industrial, cuja característica essencial é a aplicação das tecnologias digitais em centros de automação da produção industrial, das redes de comunicação e transporte, da oferta de lazer e educação. A geração centennial precisará de escolas reformuladas e revigoradas, aptas a formar cidadãos globais, cujas competências cognitivas e socioafetivas deverão estar voltadas para o trabalho em conjunto, a vivência empática junto a culturas e costumes diversos, o respeito oratório, ou seja, ser capaz de efetivamente ouvir e se fazer entender pelo outro, a argumentação responsável, pela qual o envolvimento com os problemas locais e globais tornam-se ponto de reflexão coletiva e estímulo para mudanças de atitudes individuais. Será um crime contra a humanidade privar nossos filhos e filhas da educação escolar científica, crítica, para o mundo do trabalho, da cultura, do lazer, do consumo sustentável, da vida coletiva global. Por isso, eu não tenho vergonha de dizer: sou a favor da educação escolar laica e científica.
Profa. Ana Luiza M Bastos
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